Mais feio do que nunca.
Foi nesse instante que reparou num pequeno barco de papel que um miúdo lançara na corrente da água da chuva e que navegava apressadamente como se tivesse pressa de chegar ao seu destino.
Sem hesitar um só segundo, Papim, atirou-se para dentro do barco e quase o fez afundar com o seu peso e com a violência do salto. Mas tudo correu bem porque o pequeno barquinho continuou a flutuar como se fosse uma pluma. A emoção daquele momento era para Papim a fórmula perfeita da felicidade. Conseguiu a partir desse momento pôr a imaginação a funcionar como a sua amiga lhe ensinara três anos antes.
Deixou-se ir pela correnteza da água como se flutuasse nas asas de um pássaro, à procura de novas aventuras. Enquanto navegava naquele barquinho apressado, viu em cima de uma pedra um sapo verde com a boca muito aberta, como se estivesse a espreguiçar-se. Papim sorriu-lhe e cumprimentou-o com a mão. A resposta do sapo foi um sorriso trocista enquanto mergulhava o seu olhar carrancudo no chão só para não retribuir o seu cordial cumprimento.
Papim sentiu-se furioso, mas resolveu ignorá-lo porque o mais importante nesse momento era viajar no seu barquinho de papel e conhecer seres importantes e generosos e principalmente o mundo lá fora. A sua felicidade não dependia de seres desprezáveis porque o mais interessante era valorizar as coisas boas da vida.
De repente o barco onde navegava encalhou numa pedra e foi violentamente perfurado por um ramo de uma árvore que navegava na correnteza da água. Assim o barco onde viajava acabou completamente desfeito até se transformar num amontoado de papel amolecido. Papim sentiu pena de ter que abandonar aquele seu refúgio mas conformou-se com a sua sorte. Segurando-se ao pau que destruíra o barquinho de papel resolveu flutuar até à berma da estrada e segurar-se a uma pedra solta da calçada que fora poupada à violenta tempestade que continuava a cair. Procurou descansar um pouco e só depois se foi sentar num jardim próximo cheio de relva muito verde e molhada.
Foi nesse instante que reparou na presença de um gafanhoto igualmente encharcado, que dormitava por entre algumas folhas mortas com a cabeça inclinada sobre uma das asas. Papim dirigiu-se a ele e perguntou-lhe:
>> Olá… gafanhoto, o que fazes tu aqui a dormir à chuva se podes saltar para cima daquela árvore e protegeres-te da tempestade? < < - Faço tudo, e nada… - respondeu ele desolado. - É que… só me apetece morrer. Tenho uma asa partida e agora não sei como hei-de voar para me ir juntar aos meus companheiros. Quem és tu? És um ser tão esquisito… Tens nome? > > Chamo-me Papim. Pertenço a uma menina que gosta muito de mim, apesar de ser tão esquisito como todos me acham! Moro ao fundo daquela rua, no número 40, mas hoje apeteceu-me sair e vir conhecer o mundo de que a minha menina tanto fala. Acho que fui feito para alegrar o coração dessa tal menina sonhadora que gosta de sonhar, de brincar com as palavras porque elas lhe devolvem outras vidas, como me repete tantas vezes. Gosto mais dela hoje do que ontem, agora que conheci isto a que chamam mundo. Senti vontade de sair cá para fora porque estava um pouco farto de estar em casa esquecido num pequeno quarto sombrio, por isso hoje resolvi sair à rua para conhecer novos amigos. Mas já não estou tão certo como estava antes, de que isso é o mais importante. A realidade é bem mais feia do que eu podia imaginar. Não consigo ver as mesmas coisas belas que aquela menina sonhadora me descreve a toda a hora. Será defeito dos meus olhos? Ouve… tu queres ser meu amigo, gafanhoto?>>
- Hum… Não tenho nada contra bonecos por mais estranhos que sejam, por isso… porque não? Só não gosto nada é dos seres humanos. São quase sempre uns brutos porque se entretêm a fazer mal à bicharada, às plantas, a tudo quanto è natureza em vez de a preservarem. Foi um desses miúdos atrevidos que vivem nessa rua de onde vens, e que me imitam mal com saltinhos ridículos, que me arrancou uma asa a rir, com maldade.
Agora nunca mais vou sentir-me livre Sinto-me um inútil porque nunca mais poderei fazer o que mais gosto que é saltar e voar. A propósito, acho-te feio, Papim, sou sincero, mas isso para mim não é o mais importante. O que me interessa é que me pareces sincero. Para mim esse é o valor mais importante, por isso acho que desejo ser teu amigo, sim. Amigos assim são sempre poucos.
>> Feio…? Tu achas-me feio, é? Para a menina a quem pertenço eu sou encantador…!
Porque me achas tu feio? Fico tão triste que me digas isso…>>
- Bom… desculpa, não te queria magoar. Tens apenas um olho, és de arame maleável e ainda por cima o único olho que tens é vermelho. Bem… Acho-te de facto um pouco feio. Mas… como já te disse não é isso o mais importante, valemos pelo que somos e nunca pelo que aparentamos.
>> Eu…só tenho um olho? Ai… ai… que perdi um olho enquanto navegava naquele barco de papel. O que vai ser de mim? Foi a chuva que me fez perder o meu rico olho, que desgraça a minha… Agora… o que vou fazer? Só agora é que percebo a razão daquele sapo estúpido troçar de mim quando eu lhe acenei Limitou-se a ignorar-me como se eu tivesse sarna. Porque se riem sempre de quem é diferente? Que valente parvo…a fazer pouco de mim! Olha… sempre é preferível ter apenas um olho vermelho do que ter aqueles olhos feios de sapo que parecem balões prontos a explodir, como ele tem, ele e todos os ascorosos sapos. Se calhar, assim vesgo como estou, aquela menina a quem pertenço já não vai gostar de mim. O que é que tu achas, gafanhoto?
Se calhar… o melhor é nem regressar àquela casa de onde saí à pouco, porque por certo quando ela me voltar a ver, também vai troçar de mim como fazem todos os outros e acabe por me abandonar. Que injustiça…>>
- Não conheço essa menina, Papim, mas não acredito nisso. Ela só o vai fazer se não gostar mesmo de ti. Ser feio e vesgo não é o mais importante. O que conta é se és um boneco bom, se nunca por nunca tentas prejudicar os outros. Valemos pelo que somos porque o maior valor está na grandeza da nossa alma. Não esqueças nunca isso…
>> Achas mesmo… gafanhoto? Talvez tenhas razão. Quando gostamos das coisas nunca as abandonamos mesmo que aos outros pareçam feias ou velhas. Gostamos e pronto. Obrigada pelo conselho! Quero que saibas que vou ser sempre teu amigo embora também tu estejas diminuído, apenas com uma asa. Anda, vem daí, amigo. Encavalita-te às minhas costas porque vou levar-te para junto dos outros gafanhotos para que nunca te sintas abandonado e infeliz. A partir deste momento sou teu amigo e quando temos amigos nunca estamos sós. Eu prometo que sempre que puder irei visitar-te e que iremos passear. Está bem?
Embora só tenhas uma asa, voarás através de mim. Hei-de correr sem me cansar só para te ver sorrir. Levando-te às cavalitas tu vais poder voar de novo. Queres vir comigo? Levo-te até ao céu porque o céu é o limite e porque nunca há limites enquanto soubermos sonhar. É a minha amiga que o diz e é nisso que eu preciso acreditar.>>
- Está bem, amigo, obrigado. Nunca te vou esquecer. Valeu a pena ter ficado aqui à chuva a sofrer só para te conhecer. É como se estivesse à tua espera…!
Agora eu sei que quando perdemos uma coisa há sempre outra que acabamos por ganhar! A vida acaba por nos compensar de qualquer jeito… não é, Papim?
>> Tens toda a razão gafanhoto, acho que sim. Também eu hoje perdi um olho. Fiquei triste com essa descoberta mas logo depois acabei por conhecer-te melhor e ganhar um amigo especial como tu. Depois da chuva e da tristeza, vem sempre o sol e a alegria.
O mais importante é quando continuamos a sonhar e a ter esperança. O mais importante é continuar a ter uma grande amiga como eu tenho.
Tal como me lembraste há pouco.
Na verdade valemos pelo que somos… porque o maior valor está na grandeza da nossa alma!